Franz Kafka

Published on February 2017 | Categories: Documents | Downloads: 733 | Comments: 0 | Views: 579
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Franz Kafka (traduções de Torrieri Guimarães)

Fábula Curta "Ai de mim!", disse o rato, " - o mundo vai ficando dia a dia mais estreito". "- Outrora, tão grande era que ganhei medo e corri, corri até que finalmente fiquei contente por ver aparecerem muros de ambos os lados do horizonte, mas estes altos muros correm tão rapidamente um ao encontro do outro que eis-me já no fim do percurso, vendo ao fundo a ratoeira em que irei cair". "- Mas o que tens a fazer é mudar de direção", disse o gato, devorando-o.

A Partida Dei ordem de irem buscar meu cavalo ao estábulo. O criado não me compreendeu. Fui eu mesmo ao estábulo, ensilhei o cavalo e montei. Ao longe ouvi o som de uma trombeta, perguntei o que significava aquilo. Ele de nada sabia, não ouvira nada. No portão deteve-me, para perguntar-me: - Para onde cavalga o senhor? - Não o sei - respondi -. Apenas quero ir-me daqui, somente ir-me daqui. Partir sempre, sair daqui, apenas assim posso alcançar minha meta. - Conheces então, tua meta? - perguntou ele. - Sim - respondi eu -. Já disse. Sair daqui: esta é minha meta.

Renúncia! Era muito cedo, pela manhã, as ruas estavam limpas e vazias, eu ia à estação. Ao verificar a hora em meu relógio com a do relógio de uma torre, vi que era muito mais tarde do que eu acreditara, tinha que apressar-me bastante; o susto que me produziu esta descoberta me fez perder a tranquilidade, não me orientava ainda muito bem naquela cidade. Felizmente havia um policial nas proximidades, fui até ele e perguntei-lhe, sem fôlego, qual era o caminho. Sorriu e disse: - Por mim queres conhecer o caminho? - Sim - disse -, já que não posso encontrá-lo por mim mesmo. - Renúncia, renúncia - disse e voltou-se com grande ímpeto, como as pessoas que querem ficar a sós com o seu riso. O Abutre Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois

regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre. - É que estou sem defesa - respondi. - Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulálo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados. - Mas deixar-se torturar dessa maneira! - disse o senhor. - Basta um tiro e pronto! - Acha que sim? - disse eu. - Quer o senhor disparar o tiro? - Certamente - disse o senhor. - É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora? - Não sei lhe dizer.-respondi. Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei: - De qualquer modo, vá, peço-lhe. - Bem - disse o senhor. - Vou o mais depressa possível. O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.

Franz Kafka

O Exame Sou um criado, mas não há trabalho para mim. Sou medroso e não me ponho em evidência; nem sequer me coloco em fila com os outros, mas isto é apenas uma das causas de minha falta de ocupação; também é possível que minha falta de ocupação nada tenha a ver com isso; o mais importante é, em todo caso, que não sou chamado a prestar serviço; outros foram chamados e não fizeram mais gestões que eu; e talvez nem mesmo tenham tido alguma vez o desejo de serem chamados, enquanto que eu o senti, às vêzes, muito intensamente. Assim permaneço, pois, no catre, no quarto de criados, o olhar fixo nas vigas do teto, durmo, desperto e, em seguida, torno a adormecer. Às vêzes cruzo até a taverna onde servem cerveja azêda; algumas vêzes por desfastio emborquei um copo, mas depois volto a beber. Gosto de sentar-me ali por que, atrás da pequena janela fechada e sem que ninguém me descubra, posso olhar as janelas de nossa casa. Não se vê grande coisa; sôbre a rua, dão, segundo creio, apenas as janelas dos corredores, e além do mais, não daqueles que conduzem aos aposentos dos senhores; é possível também que eu me engane; alguém o sustentou certa vez, sem que eu lho perguntasse, e a impressão geral da fachada o confirma. Apenas de vez em quando são abertas as janelas, e quando isso acontece, o faz um criado, o qual, então, se inclina também sôbre o parapeito para olhar para baixo um instantinho. São, pois, corredores onde não se

pode ser surpreendido. Além do mais não conheço esses criados; os que são ocupados permanentemente na parte de cima, dormem em outro lugar; não em meu quarto. Uma vez, ao chegar à hospedaria, um hóspede ocupava já o meu posto de observação; não me atrevi a olhar diretamente para onde estava e quis voltar-me na porta para sair em seguida. Mas o hóspede me chamou e, assim, então, percebi que era também um criado ao qual eu tinha visto alguma vez e em alguma parte, embora sem tar falado nunca com ele até aquele dia. - Por que queres fugir? Senta-te aqui e bebe. Eu pago. Sentei-me, pois. Perguntou-me algo, mas não pude responder-lhe; não compreendia sequer as perguntas. Pelo menos eu disse: - Talvez agora te aborreça o fato de ter-me convidado. Vou-me, pois. E quis erguer-me. Mas ele estendeu a mão por cima da mesa e me manteve em meu lugar. - Fica-te!, disse. Isto era somente um exame. Aquele que não respondesse às perguntas está aprovado no exame. Franz Kafka O Silêncio das Sereias Prova de que até os meios insuficientes - infantis mesmo - podem servir à salvação: Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos. As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista. E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes as fez esquecer de todo e qualquer canto. Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses. Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas. De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.

Franz Kafka Lendas De Prometeu contam-se quatro lendas: Pela primeira – por ter ele traído os Deuses junto aos homens, foi ele posto a ferros numa penedia do Cáucaso e lá os Deuses mandavam águias a fazer de pasto o seu fígado sempre renovado. Pela segunda – atormentado pelos bicos que o laceravam, Prometeu foi encolhendo-se cada vez mais de encontro ao rochedo até formar com ele uma coisa única. Pela terceira – a traição de Prometeu esqueceu-se nos séculos: os Deuses esqueceram, as águias, ele próprio... Pela quarta – cansaram-se, todos, daquele processo sem fundamento: cansaram-se os Deuses, cansaram-se as águias, cansada fechou-se a ferida. Ficou o inexplicável monte de pedra. A lenda busca explicar o inexplicável: como surgiu de um fundo de verdade, tinha de acabar todavia sem explicação.

O Heleno Fora admissível que Alexandre, o Grande – apesar das façanhas bélicas da sua mocidade, apesar do excelente exército que ele tinha preparado, apesar da capacidade que sentia em si para mudar a face do mundo – ficasse parado à margem do Helesponto, sem cruzá-lo jamais, e não por medo ou por indecisão ou por inércia: apenas pela ação da gravidade.

O Diabo Se somos possuídos pelo Diabo, não há de ser por um – pois neste caso viveríamos, pelo menos aqui na Terra, tranquilos, como vivemos com Deus, em equilíbrio, sem quebra de unidade, sem prevenção, sempre seguros de nossa reserva humana. Sua face não nos amedrontaria, pois, como seres endiabrados, conforme a sensibilidade a essa visão seríamos suficientemente espertos para preferir imolar uma das mão cobrindo-lhe o rosto com ela.

Se tivéssemos conosco apenas um Diabo com imperturbada e clara noção da nossa natureza, e com momentânea liberdade de ação, esse haveria de ter, durante o prazo de uma vida humana, força bastante para elevar-se em nós muito acima do espírito de Deus e aí se agüentar, ou mesmo agitar-se, de maneira a não dar de si nem um vislumbre e a não ser assim importunado. Só uma porção de Diabos é capaz de promover nossas desgraças terrenas. Por que não se exterminam uns aos outros, até ficar um só? Ou por que não se subordinam todos a um Diabo superior? Uma ou outra solução faria sentido com o diabólico propósito de burlar-nos o mais possível. Que adianta, porém, se lhe falta coesão, o meticuloso cuidado que todos os Diabos têm conosco? É evidente que para o Diabo a queda de um fio de cabelo humano tem muito mais importância do que para Deus, pois então o Diabo realmente perde esse cabelo e Deus não. Só que, deste modo, com tantos Diabos em nós, jamais chegaremos a bem-estar nenhum.

O Paraíso Perdido Livra-te de dar a perceber ao Maligno que tens segredos para ele! Jamais poderíamos pagar ao Maligno na mesma moeda, mas tentamos sem parar... As desculpas com que acolhes o Mal dentro de ti, não são idéias tuas e sim do Maligno. Uma vez que tenhas acolhido o Mal em ti, ele não te pedirá mais do que confiança. O Mal chega sempre abertamente e é de pronto perceptível pelos sentidos: caminha com as próprias raízes e não há por que extirpá-las. Às vezes o Mal está em nossas mãos como um instrumento: se temos a força necessária, ele se deixa pôr para o lado sem reagir. Um dos meios de sedução mais eficaz, do Mal, é o desafio à luta: por exemplo, a luta com as mulheres – que vai acabar na alcova. O amor carnal eclipsa o amor celestial; não o conseguiria por si só, mas como traz em si inconscientemente o amor celestial, funde-se com ele. O Homem tem dois pecados capitais, dos quais decorrem todos os outros: a impaciência e a preguiça. Por impaciência foi expulso do Paraíso, e por preguiça não volta para lá. Talvez não haja senão um pecado capital: a impaciência. Por impaciência foi expulso e por impaciência não volta.

A pergunta Só a nossa noção de tempo nos faz pensar em Juízo Final, quando é de justiça sumária que se trata. O suicida é como o prisioneiro que, vendo armar-se uma forca no pátio, imagina que é para ele – foge de sua cela, à noite, desce ao pátio e pendura-se ao baraço.

Os mártires não menosprezam o corpo, apenas fazem-no pregar à cruz: é no que estão de acordo com seus adversários. As portas são inumeráveis, a saída é uma só, mas as possibilidades de saída são tão numerosas quanto as portas. Há um propósito e nenhum caminho: o que denominamos caminho não passa de vacilação. Os leopardos invadem o Templo e esvaziam os vasos sagrados... O fato não cessa de reproduzir-se; até que se chega a prever o momento exato e isso entra a fazer parte do ritual. Os bons vão a passo certo; os outros, ignorando-os inteiramente, dançam à volta deles a coreografia da hora que passa. Outrora eu não podia compreender que minhas perguntas não obtivessem resposta; hoje em dia não compreendo que jamais tivesse admitido a hipótese de formular perguntas... Bem, eu não acreditava então em coisa alguma – só fazia perguntar. O Vizinho Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Meu negócio descansa inteiramente sobre os meus ombros. Duas senhoritas com suas máquinas de escrever e seus livros comerciais no primeiro quarto, e uma escrivaninha, caixa, mesa de informações, cadeiras de braços e telefone no meu, constituem todo meu aparalhamento de trabalho. É muito fácil controlar isso com uma vista de olhos, e dirigi-lo. Sou muito jovem e os negócios se acumulam aos meus pés. Não me queixo, não me queixo. Desde o Ano Novo, um jovem alugou sem hesitar a sala contígua, pequena e desocupada, que por tanto tempo titubeei, estupidamente, em tomar para mim. Trata-se de um quarto com antecâmara e, além do mais, uma cozinha. Tivesse podido utilizar o quarto e a antecâmara — minhas duas empregadas sentiram-se mais uma vez sobrecarregadas em suas tarefas —, mas, para que me teria servido a cozinha? Esta pequena hesitação foi a causa de permitir que me tirassem a sala. Nela está instalado, pois, esse jovem. Chama-se Harras. Com exatidão não sei o que faz ali. Sobre a porta lê-se: "Harras, escritório". Pedi informações, comunicaram-me que se trataria de um negócio idêntico ao meu. Na realidade, não vem ao caso dificultar-lhe a concessão de crédito, pois se trata de um homem jovem e de aspirações, cujas atividades tenham talvez futuro, mas não se poderia, contudo, aconselhar que se lhe outorgue crédito, pois atualmente, segundo todas as presunções, careceria de fundos. Quer dizer, a informação que se dá habitualmente quando não se sabe de nada. Às vezes encontro Harras na escada, deve ter sempre uma pressa extraordinária, pois se escapule diante de mim. Nem mesmo pude vê-lo bem ainda, e já tem pronta na mão a chave do escritório. Num instante abre a porta, e antes que o observe bem já deslizou para dentro como a cauda de uma rata e aí tenho outra vez à minha frente o cartaz "Harras, escritório", que li muitas mais vezes do que o merece. A miserável finura das paredes, que denunciam o homem eternamente ativo, ocultam porém o desonesto. O telefone está apenso à parede que me separa do quarto de meu vizinho. Não obstante, destaco-o apenas como constatação particularmente irônica. Mesmo quando pendesse da parede oposta, ouvir-se-ia tudo da sala vizinha. Evitei o meu costume de pronunciar ao telefone o nome de meus clientes. Mas não é necessária muita astúcia para adivinhar os nomes através de característicos mas inevitáveis torneiros da conversação. Às

vezes, aguilhoado pela inquietação, sapateio nas pontas dos pés em volta do aparelho, com o receptor no ouvido, mas não posso impedir que se revelem segredos. Naturalmente, as resoluções de caráter comercial se tornam assim inseguras e minhas voz, trêmula. Que faz Harras enquanto telefono? Se quisesse exagerar muito — o que é preciso fazer com freqüência para ver claro —, poderia dizer: Harras não precisa telefone, usa o meu, colocou o sofá contra a parede e escuta; eu, em troca, quando o telefone toca, devo ir atender, tomar nota dos desejos do cliente, adotar resoluções graves, sustentar conversações de grandes proporções, porém, antes de tudo, proporcionar a Harras informações involuntárias, através da parede. Ou antes, nem mesmo espera o fim da conversação, porém que se ergue depois da passagem que lhe informa suficientemente sobre o caso, atira-se, segundo o seu costume, através da cidade e, antes de eu ter pendurado o receptor, está talvez trabalhando já contra mim. Diante da Lei Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. -"É possível" - diz o guarda. -"Mas não agora!". O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. -"Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim". O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferenca, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar.O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: -"Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste". Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guada durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não

pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. "Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda. -"És insaciável". -"Se todos aspiram a Lei", disse o homem. -"Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?". O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: -"Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a". Obs: Esse conto faz parte também das cenas finais no livro de Kafka "O Processo". O Escudo da Cidade Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Quando se começou a construir a tôrre de Babel, tudo estava muito em ordem; e talvez a ordem fôsse excessiva; pensava-se demais em indicadores de caminhos, intérpretes; alojamentos para trabalhadores e rotas de enlace, como se se dispusesse de séculos e outras tantas probalidades de trabalhar livremente. A opinião então reinante chegava até a estabelecer que toda lentidão para construir seria pouca; não era preciso exagerar muito esta opinião para retroceder ante a própria idéia de pôr as bases. Argumentava-se deste modo: em toda a empresa, o positivo é a idéia de construir uma torre que chege ao céu. Diante desta idéia o resto é acessório. Uma vez captado o pensamento em toda sua grandeza, não pode desaparecer já: enquanto existirem os homens, perdurará o desejo intenso de terminar a construção da torre. Neste sentido não há o que temer pelo futuro, pois antes do mais, o saber da humanidade vai em aumento, a arte da construção fez progressos e fará ainda outros novos; um trabalho para o qual necessitamos um ano, será realizado dentro de um século, talvez em apenas seis meses e, por acrescentamento, melhor e mais duradouramente. Por que esgotar-se, pois, desde já até o litime das forças? Isso teria sentido se se pudesse esperar que a torre fôsse construída num lapso de uma geração. Isto, contudo, de nenhum modo era dado acreditá-lo. Pois bem, poderia pensar-se que a próxima geração, com seus mais amplo saber, haveria de achar mau o trabalho da geração precedente e que teria de demolir o construído para tornar a começar. Pensamentos deste gênero paralisavam as forças, e a edificação da cidade operária deslocava a construção da torre. Cada grupo regional queria possuir o bairro mais formoso, pelo que sobrevieram quizílias que redundaram em sangrentos combates. Estas lutas eram incessantes; o que serviu de argumento aos chefes para que, por falta da necessária concentração, a torre fosse erguida muito lentamente, ou, melhor ainda, apenas ao fim de estipulada uma paz geral. Mas não se perdeu tempo tão somente em combates, pois durante as tréguas se embelezou a cidade, o que deu origem a novas invejas e novas lutas. Assim transcorreu o lapso da primeira geração, mas nenhuma das que seguiram foi diferente; apenas a destreza ia em aumento constante e, com ela, a sede de luta. A isso veio somar-se que a segunda ou terceira geração reconheceram a insensatez da construção da torre, mas os vínculos mútuos eram já demasiado fortes como para que se pudesse deixar a cidade. Tudo quanto está entroncado com a lenda e a conção que surgisse na cidade está cheio da nostalgia para o anunciado dia no qual a cidade seria aniquilada por cinco breves golpes e sucessivamente descarregados sobre ela por um punho gigantesco. Por isso tem a cidade um punho no escudo. Um Cruzamento

Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Tenho um animal singular, metade gatinho, metade cordeiro. Herdei-o com uma das propriedades de meu pai. Contudo, apenas se desenvolveu ao meu tempo, pois anteriormente possuía mais de cordeiro que de gatinho. Agora participa das duas naturezas igualmente. Do gato, a cabeça e as unhas; do cordeiro, o tamanho e a figura; de ambos, os olhos, selvagens e acesos; o pêlo, suave e bem assentado; os movimentos, já saltitantes, já lânguidos. Ao sol, sobre o parapeito da janela, faz-se uma bola e ronroneia. No prado corre como enlouquecido e mal se pode alcançá-lo. Foge dos gatos e pretende atacar os cordeiros. Em noites de lua são as telhas o seu caminho preferido. Não pode miar e tem repugnância pelos ratos. É capaaz de passar horas inteiras à espreita diante do galinheiro, mas até agora não aproveitou nunca a ocasião de matar. Alimento-o com leite doce; é o que melhor lhe assenta. Bebe-o sorvendo-o a longos tragos por entre seus dentes ferozes. Naturalmente, é um espetáculo completo para as crianças. No domingo pela manhã é hora de visitas. Ponho o animalzinho sobre os meus joelhos e as crianças de toda a vizinhança detêm-se ao meu redor. Então são formuladas as perguntas mais maravilhosas, esas que nenhum ser humano pode responder: por que existe apenas um animal como este, por que eu o tenho, exatamente eu, se antes dele existiu outro animal assim e como será depois de morto, se se sente muito só, por que não dá cria, como se chama, etc. Não me dou ao trabalho de responder, e contento-me em mostrar, sem mais explicações, aquilo que possuo. Ás vêzes, as crianças vêm com gatos e uma vez, até trouxeram dois cordeiros. Mas contrariamente às suas esperanças, não se produziram cenas de reconhecimento. Os animais olhavam-se tranquilamente com olhos animais e consideraram, sem dúvida, reciprocamente, sua existência como uma obra divina. Sobre os meus joelhos, este animal não conhece nem o medo nem desejos de persiguir ninguém. Acocorado contra mim é como se sente melhor. Está apegado à família que o criou. Isto não pode ser considerado, por certo, como uma demonstração de fidelidade extraordinária, porém como o reto instinto de um animal que na terra tem inumeráveis parentes políticos, mas talvez nem um só consanguíneo, e para o qual, por isso, lhe parece sagrada a proteção que encontrou entre nós. Às vezes me faz rir quando me fareja, desliza-se por entre minhas pernas, e não há modo de afastá-lo de mim. Não satisfeito em ser gato e cordeiro, quer ser quase cachorro. Aconteceu uma vez que, como pode ocorrer a qualquer um, não encontrava solução para meus problemas de negócios e para tudo o que se relacionasse com eles, e pensava abandonar tudo; em tal estado de espírito enterrei-me na cadeira de palha, com o animal sobre os joelhos, e ao olhar para baixo percebi casualmente que dos longuíssimos pelos de sua barba gotejavam lágrimas. Eram minhas? Eram suas? Tinha também aquele gato com alma de cordeiro ambição humana? Não herdei grande coisa do meu pai, mas esta herança é digna de ser mostrada. Tem ambas as inquietações em si, a do gato e a do cordeiro, por diversas que sejam uma e outra. Por isso a pele lhe é estreita. Às vezes salta sobre o assento, ao meu lado, apóia-se com as patas dianteiras em meu ombro e põe o focinho junto ao meu ouvido. É como se me dissesse algo e então se inclina para diante e olha-me cara a cara para observar a impressão que a comunicação me fêz. E para ser complacente com ele, faço como se tivesse

compreendido algo e confirmo com a cabeça. Então salta ao solo e começa a bailar ao meu redor. Talvez o facão de açougueiro fôsse uma libertação para este animal, mas como o recebi em herança devo evitar isso. Por iso terá de esperar que o alento lhe falte por si, apesar de que, às vezes, me olhe com olhos humanamente compreensivos que incitam a agir compreensivamente. -

Comunidade Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Somos cinco amigos; uma vez saímos um atrás do outro de uma casa; primeiro veio um e pôsse junto à entrada, depois veio, ou melhor dito, deslizou-se tão ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercúrio, o segundo e se pôs não distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto, depois o quinto. Finalmente, estávamos todos de pé, em uma linha. A gente fixou-se em nós e assinalando-nos, dizia: os cinco acabam de sair dessa casa. A partir dessa época vivemos juntos, e teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre intrometer-se. Não nos faz nada, mas nos incomoda, o que já é bastante; porque se introduz por força ali onde não é querido? Não o conhecemos e não queremos aceitá-lo. Nós cinco tampouco nos conhecíamos antes e, se se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível nem tolerado com respeito àquele sexto. Além do mais somos cinco e não queremos ser seis. E que sentido, sobretudo, pode ter esta convivência permanente?, se entre nós cinco tampouco tem sentido, mas nós estamos já juntos e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em razão de nossas experiências. Mas, como ensinar tudo isto ao sexto, pôsto que longas explicações implicariam já em uma aceitação de nosso círculo? É preferível não explicar nada e não o aceitar. Por muito que franza os lábios, afastamo-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez.

De Noite Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Submergir-se em a noite! Assim como às vêzes se enterra a cabeça no peito para refletir, fundir-se assim por completo em a noite. Em redor dormem os homens. Um pequeno espetáculo, um auto-engado inocente, é o dormir em casas, em camas sólidas, sob teto seguro, estendidos ou encolhidos, sobre colchões, entre lençóis, sob cobertas; na realidade, encontram-se reunidos como outrora uma vez e como depois em uma comarca deserta: um acampamento à intempérie, uma incontável quantidade de pessoas, um exército, um povo sob um céu frio, sobre uma terra fria, atirados ao solo ali onde antes se estêve de pé, com a fronte apertada contra o braço, e a cara contra o solo, respirando tranquilamente. E tu velas, és um dos vigias, encontras ao próximo agitando o madeiro aceso que tomaste do montão de estilhas, junto a ti. Por que velas? Alguém tem que velar, se disse. Alguém precisa estar aí.

O Timoneiro

Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) -Não sou acaso timoneiro? - exclamei. -Tu? - perguntou um homem alto e escuro, e passou as mãos pelos olhos, como se dissipasse um sonho. Eu estivera ao timão em noites escuras, com a débil luz do farol sobre a minha cabeça, e agora tinha vindo aquele homem e queria pôr-me de lado. E como eu não cedesse, pôs o pé sobre o meu peito e empurrou-me lentamente contra o solo, enquanto eu continuava sempre aferrada à roda do timão e a arrancava ao cair. Então o homem apoderou-se dela, pô-la em seu lugar e me deu um empurrão, afastando-me. Refiz-me depressa, contudo, fui até a escotilha que levava ao alojamento da tripulação, e gritei: -Tripulantes! Camaradas! Venham depressa! Um estranho tirou-me do timão! Chegaram lentamente, subindo pela escadinha, eram formas poderosas, oscilantes, cansadas. -Sou eu o timoneiro? - perguntei. Assentiram, porém apenas tinham olhares para o estranho, ao qual rodeavam em semicírculo, e quando com voz de mando ele disse: "Não me aborreçam", reuniram-se, olharam-me assentindo com a cabeça e desceram outra vez a escadinha. Que povo é este? Pensa também, ou apenas se arrasta sem sentido sobre a terra?

Poseidon Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Poseidon estava sentado à sua mesa de trabalho e fazia contas. A administração de todas contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho infinito. Poderia dispor de quantas forças auxiliares quisera, e com efeito, tinhas muitas, mas como tomava seu emprego muito a sério, verificava novamente todas as contas, e assim as forças auxiliares lhe serviam de pouco. Não se pode dizer que o trabalho lhe era agradável e na verdade o realizava unicamente porque lhe tinha sido impôsto; tinha-se ocupado, sim, com frequência, em trabalhos mais alegres, como ele dizia, mas cada vez que se lhe faziam diferentes propostas, revelava-se sempre que, contudo, nada lhes agradava tanto como seu atual emprego. Além do mais era muito difícil encontrar uma outra tarefa para ele. Era impossível designar-lhe um determinado mar; prescindindo de que aqui o trabalho de cálculo não era menor em quantidade, porém em qualidade, o Grande Poseidon não podia ser designado para outro cargo que não comportasse poder. E se se lhe oferecia um emprego fora da água, esta única idéia lhe provocava mal-estar, alterava-se seu divino alento e seu férreo torso oscilava. Além do mais, suas queixas não eram tomadas a sério; quando um poderoso tortura, é preciso ajustar-se a ele aparentemente, mesmo na situação mais desprovida de perspectivas. Ninguém pensava verdadeiramente em separar a Poseidon de seu cargo, já que desde as origens tinha sido destinado a ser deus dos mares e aquilo não podia ser modificado. O que mais o irritava - e isto era o que mais o indispunha com o cargo - era inteirar-se de que como representavam com o tridente, guiando como um cocheiro, através dos mares. Entretanto, estava sentado aqui, nas profundidades do mar do mundo e fazia contas ininterruptamente; de vez em quando uma viagem da qual além do mais, quase sempre

regressava furioso. Daí que mal havia visto os mares, isso acontecia apenas em suas fugitivas ascenções Olimpo, e não os teria percorrido jamais verdadeiramente. Gostava de dizer que com isso esperava o fim do mundo, que então teria certamente ainda um momento de calma, durante o qual, justo antes do fim, depois de rever a última conta, poderia fazer ainda um rápido giro.

A Ponte Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Eu era rígido e frio, eu era uma ponte; estendido sobre um precipício eu estava. Aquém estavam as pontas dos pés, além, as mãos, encravadas; no lôdo quebradiço mordi, firmandome. As pontas da minha casaca ondeavam aos meus lados. No fundo rumorejava o gelado arroio das trutas. Nenhum turista se extraviava até estas alturas intrasitáveis, a ponte não figurava ainda nos mapas. Assim jazia eu e esperava; devia esperar. Nenhuma ponte que tenha sido contruída alguma vez, pode deixar de ser ponte sem destruir-me. Foi certa vez, para o entardecer - se foi o primeiro, se foi o milésimo, não o sei - meus pensamentos andavam sempre confusos, giravam, sempre em círculo. Para o entardecer, no verão, obscuramente murmurava o arroio, quando ouvi o passo de um homem. A mim, a mim. Estira-te, ponte, coloca-te em posição, vigã órfâ de balaústres, sustém aquele que te foi confiado. Nivela imperceptivelmente a incerteza de seu passo, mas se cambaleia, dá-te a conhecer e, como um deus da montanha, atira-o à terra firme. Veio, golpeou-me com a ponta férrea de seu bastão, depois ergueu com ela as pontas de minha casaca e arrumou-as sôbre mim. Com a ponta andou entre meu cabelo emaranhado e a deixou longo tempo ali dentro, olhando provavelmente com olhos selvagens ao seu redor. Mas então - quando eu sonhava atrás dele sobre montanhas e vales - saltou, caindo com ambos os pés na metade de meu corpo. Estremeci-me em meio da dor selvagem, ignorante de tudo o mais. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um assaltante de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E voltei-me para vê-lo. A ponta de volta! Não me voltara ainda, e já me precipitava, precipitava-me e jáestava dilacerado e varado nos pontiagudos calhaus que sempre me tinham olhado tão aprazilvelmente da água veloz.

Das Alegorias Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Muitos se queixam de que as palavras dos sábios sejam sempre alegorias, porém inaplicáveis na vida diária, e isto é o único que possuímos. Quando o sábio diz: "Anda para ali", não quer dizer que alguém deva passar para o outro lado, o que sempre seria possível se a meta do caminho assim o justificasse, porém que se refere a um local legendário, algo que nos é desconhecido, que tampouco pode ser precisado por ele com maior exatidão e que, portanto, de nada pode servir-nos aqui. Em realidade, todas essas alegorias apenas querem significar que o inexequível é inexequível, o que já sabíamos. Mas aquilo em que cotidianamente gastamos as nossas energias, são outras coisas. A este propósito disse alguém: "Por que vos defendeis? Se obedecêsseis às alegorias, vós mesmos vos teríeis convertido em tais, com o que vos teríeis libertado da fadiga diária." Outro

disse: "Aposto que isso é também uma alegoria." Disse o primeiro: "Ganhaste". Disse o segundo: "Mas por infelicidade, apenas naquilo sobre alegoria". O primeiro disse: "Em verdade, não; no que disseste da alegoria perdeste."

Sobre a questão das leis Franz Kafka (tradução de Torrieri Guimarães) Em geral as nossas leis não são conhecidas, senão que constituem um segredo do pequeno grupo de aristocratas que nos governa. Embora estejamos convencidos de que estas antigas leis são cumpridas com exatidão é extremamente mortificante ver-se regido por leis que não se conhecem. Não penso aqui nas diversas possibilidades de interpretação nem nas desvantagens que se derivam de que apenas algumas pessoas, e não todo o povo, possam participar da interpretação. Talvez estas desvantagens não sejam tão grandes. As leis são tão antigas que os séculos contribuíram para sua interpretação e esta interpretação já se tornou lei também, mas as liberdades possíveis a respeito da interpretação, mesmo que ainda subsistam, acham-se muito restringidas. Além do mais a nobreza não tem evidentemente nenhum motivo para deixar-se influir na interpretação por seu interesse pessoal em nosso prejuízo, já que as leis foram estabelecidas desde as suas origens por ela mesma; a qual se acha fora da lei, que, precisamente por isso, parece ter-se pôsto exclusivamente em suas mãos. Isto, naturalmente, encerra uma sabedoria - quem duvida da sabedoria das antigas leis , mas ao mesmo tempo nos é mortificante, o que provavelmente é inevitável. Além do mais, estas aparências de leis apenas podem ser na realidade suspeitadas. Segundo a tradição existem e foram confiadas como segrêdo à nobreza, mas isto não é mais do que uma velha tradição, digna de crédito pela sua antiguidade, pois o caráter destas leis exigem também manter em segrêdo sua existência. Mas se nós, o povo, seguimos atentamente a conduta da nobreza desde os mais remotos tempos, e possuímos anotações de nossos antepassados referentes a isso, e as temos prosseguido conscienciosamente até acreditar discernir nos fatos inumeráveis certas linhas diretrizes que permitem concluir sobre esta ou aquela determinação histórica, e se depois destas deduções finais cuidadosamente peneiradas e ordenadas procuramos adaptar-nos de certo modo ao presente e ao futuro, tudo aparece então como incerto e talvez como simples jogo de inteligência, pois talvez essas leis que aqui procuramos decifrar não existam. Há um pequeno partido que sustenta realmente esta opinião e que procura provar que quando uma lei existe apenas pode rezar: o que a nobreza faz é a lei. Esse partido vê apenas atos arbitrários na atuação da nobreza e rechaça a tradição popular, a qual, seguindo o seu parecer, apenas comporta benefícios casuais e insignificantes, provocando em troca graves danos, ao dar ao povo uma segurança falsa, enganosa e superficial com respeito aos acontecimentos do futuro. Não pode negar-se este dano, mas a maioria esmagadora de nosso povo vê sua razão de ser no fato de que a tradição não é nem mesmo ainda suficiente, que portanto há ainda muito que investigar nela e que, sem dúvida, seu material, por enorme que pareça, é ainda demasiado pequeno, pelo que terão que transcorrer séculos antes de que se revele como suficiente. O obscuro nesta visão aos olhos do presente apenas está iluminado pela fé de que virá o tempo em que a tradição e sua investigação consequente ressurgirão de certo modo para pôr ponto final, que tudo será aclarado, que a lei apenas pertencerá ao povo e a nobreza terá desaparecido. Isto não é dito por ninguém e de modo algum com ódio contra a nobreza. Melhor, devemos odiar-nos a nós mesmos, por não sermos dignos ainda de ter lei. E por isso, esse partido, na realidade tão

atraente sob certo ponto de vista e que não acredita, em verdade, em lei alguma, não aumentou as suas fileiras, e isso porque ele também reconhece a nobreza e o direito de sua existência. Em realidade, isto apenas pode ser expresso com uma espécie de contradição: um partido que, junto à crença nas leis, repudiasse a nobreza, teria imediatamente a todo o povo a seu lado, mas um partido semelhante não pode surgir porque ninguém se atreve a repudiar a nobreza. Sobre o fio deste cutelo vivemos. Um escritor resumiu isto certa vez da seguinte maneira: a única lei, visível e isenta de dúvida, que nos foi imposta, é a nobreza, e desta lei haveríamos de nos privar a nós mesmos?

O Jejuador Franz Kafka O interesse pelos jejuadores profissionais decresceu sensivelmente nos últimos decênios. Antes, convinha aos empresários organizar tais espetáculos, mas atualmente isto se tornou quase impossível. Vivemos num mundo diferente. Houve época em que a cidade inteira sentia viva curiosidade pelo artista da fome, aumentando a excitação à medida que o jejum se prolongava, querendo todos vê-lo ao menos uma vez por dia. Havia mesmo pessoas que compravam bilhetes para os últimos espetáculos, sentando-se desde manhã até a noite diante das grades da jaula. As exibições noturnas eram realçadas por archotes e, quando a temperatura era amena, levavam a jaula para o ar livre, sendo o jejuador mostrado às crianças como divertimento especial. Os adultos, muitas vezes consideravam aquilo pilhéria, aceita por estar em moda, mas as crianças ficavam boquiabertas, de mãos dadas para se sentirem mais seguras, maravilhando-se ante o homem pálido, de costelas salientes, que vestia justas calças negras e não tinha sequer uma cadeira, sentando-se na palha espalhada no chão. Às vezes ele inclinava a cabeça cortesmente, ou respondia com um sorriso constrangido às perguntas que lhe eram feitas, estendendo de vez o braço através das grades, para que verificassem como estava magro. Recolhia-se depois ao seu mutismo, não prestando atenção a nada nem a ninguém, nem mesmo ao relógio para ele tão importante e que era a única peça de mobília na jaula. Ficava a olhar o vazio, de pálpebras semicerradas, de vez em quando alcançando um pequeno copo d’água e tomando um golezinho para umedecer os lábios. Além dos espectadores comuns, havia permanentemente vigias escolhidos pelo público, que se revezavam. Por estranho que pareça, em geral eram açougueiros, em grupos de três, que tinham por obrigação observar o jejuador dia e noite, para evitar que ingerisse disfarçadamente algum alimento. Mera formalidade, instituída para tranqüilizar o povo, pois os iniciados sabiam perfeitamente bem que, fossem quais fossem as circunstâncias, nem mesmo a força o artista se resolveria a quebrar o jejum, durante a prova. A honra da profissão o impedia. Nem todos os espectadores, naturalmente, eram capazes desta compreensão. Freqüentemente havia grupos de vigilantes noturnos que relaxavam o cumprimento do dever, retirando-se para um canto, onde se deixavam empolgar por um jogo de cartas, com a evidente intenção de dar ao jejuador ensejo de tomar alimento, que eles supunham existir em algum esconderijo. Nada aborrecia mais o artista que semelhantes vigias. Faziam-no sentir-se infeliz e tornavam a abstinência insuportável. Às vezes conseguia dominar suficientemente a fraqueza para cantar, o mais que lhe era possível, tentando provar a injustiça de tais suposições. Isto de nada adiantava, pois os homens apenas admiravam a habilidade que lhe permitia comer enquanto cantava. Apreciava mais os guardas que se sentavam perto das

grades e que, não se contentando com a parca iluminação do local, lançavam sobre ele o clarão direto das lanternas elétricas que o empresário pusera à sua disposição. A luz dura não o incomodava. De qualquer maneira, não podia mesmo dormir, mas conseguia cochilar, sob qualquer luz, fosse qual fosse a hora, mesmo quando a sala se achava repleta de espectadores ruidosos. Ficava satisfeito por poder passar uma noite insone em companhia de tais vigias, estando sempre disposto a pilheriar com eles, contendo-lhe histórias de sua vida nômade, qualquer coisa que os conservasse acordados para demonstrar que não tinha comida na jaula e era capaz de uma abstinência que nenhum deles suportaria. Mas o momento mais feliz era quando chegava a manhã e vinham servir aos guardas, a suas expensas, um farto desjejum, ao qual eles se atiravam com feroz apetite de homens robustos, após cansativa noite de vigília. Naturalmente havia quem alegasse ser tal refeição uma desleal tentativa de suborno, mas isso era ir longe demais. Quando essas pessoas eram convidadas a participar de uma noite de guarda, apenas por amor a arte, sem a expectativa do café da manhã esquivavam-se, embora continuassem teimosamente a manter suas dúvidas. Tais suspeitas, no entanto, eram inevitáveis na profissão. Impossível, naturalmente, ficar uma pessoa e observá-lo continuamente, dia e noite, e ninguém poderia garantir, por experiência própria, que o jejum fora rigoroso e ininterrupto. Somente o artista sabia disso, sendo, portanto, o único realmente convicto. Mas, por outros motivos, nunca estava verdadeiramente satisfeito. Talvez não fosse apenas o jejum que o tivesse reduzido àquele estado de magreza que fazia com que muitas pessoas se afastassem, embora a contragosto, por não poderem suportar o espetáculo. A insatisfação para consigo mesmo talvez fosse a verdadeira causa de seu depauperamento. Só ele sabia o que não era dado a saber nem mesmo a outros iniciados: como era fácil jejuar. A coisa mais fácil do mundo. Não fazia segredo disto, mas o povo não lhe dava crédito. Quando muito, consideravam-no modesto, mas a maioria achava que ele estava querendo fazer publicidade, ou, então, que se tratava de um trapaceiro que descobrira meio de tornar fácil o jejum e cinicamente o confessava. Ele vira-se obrigado a aceitar tal reação e, com o tempo, a ela se habituara, mas a íntima satisfação persistia e nunca, justiça seja feita, deixara a jaula por espontânea vontade, quando chegava o término da prova. O prazo máximo fora fixado em quarenta dias pelo empresário, que não lhe permitia ir além, nem mesmo nas grandes cidades. Havia boas razões para isso. A experiência demonstrara que, durante 40 dias, a curiosidade do público podia ser mantida pela pressão de anúncios, mas depois disso o povo começa a se desinteressar, diminuindo o numero de simpatizantes. Isto variava, naturalmente, de uma cidade a outra, entre este ou aquele país, mas em geral 40 dias era o limite. Assim, no 40o dia abria-se a porta da jaula engrinaldada de flores. Entusiásticos espectadores enchiam o local, entravam na jaula, para verificar o resultado da prova, que era anunciado por meio de alto-falante. Finalmente apareciam duas moças, felizes por terem sido escolhidas para tal honraria. Iam ajudar o artista a descer os poucos degraus que levavam à mesa onde se achava a refeição cuidadosamente preparada para um homem em suas condições físicas. Neste momento, o jejuador sempre se mostrava obstinado. Verdade que entregava os braços descarnados às duas moças que sobre ele se inclinavam para auxiliá-lo, mas não queria saber de levantar. Por que interromper o jejum especialmente neste instante, após 40 dias? Agüentara por muito tempo.: por que desistir agora, quando se achava em plena forma, ou, para ser exato, ainda não estava em sua melhor forma? Por que negar-lhe a fama que teria, se continuasse, a glória de ser, não apenas o recordista da fama de todos os tempos (o que talvez

já fosse) mas a de sobrepujar seu próprio feito, com uma demonstração que ninguém julgaria possível? Ele sabia não haver limite para sua resistência. Já que o público parecia admirá-lo tanto, por que não se mostrava mais paciente? Se ele podia suportar uma abstinência prolongada, por que não agüentavam eles o espetáculo? Além do mais, estava cansado, achava-se sentado confortavelmente sobre a palha, e agora lhe viam exigir que se levantasse para comer! Só de pensar nisto sentia náusea e somente a presença das moças o impedia de manifestá-la e, assim mesmo, com esforço. Fitou-as, aparentemente tão amigas, mas na realidade cruéis; e sacudiu a cabeça que lhe pesava no pescoço enfraquecido. Aconteceu então, o que sempre acontecia. O empresário adiantou-se sem dizer palavra – a banda impossibilitava qualquer espécie de discurso – ergueu os braços acima do artista, como que a convidar o céu a olhar para aquela pobre criatura ali na palha, mártir que em verdade era, embora noutro sentido. Com exageradas precauções, agarrou-lhe a cintura emaciada, para que pudessem apreciar devidamente a sua frágil condição, e entregou-o as moças, muito pálidas, dando-lhes disfarçadamente uma sacudidela que fez vacilarem suas pernas trôpegas. O artista submeteu-se agora totalmente, a cabeça tombada sobre o peito, como se ali tivesse ido parar por acaso. O corpo foi puxado para fora, os joelhos tentavam firmar-se um no outro, no instinto de conservação, as pernas se arrastavam como se ele não pisasse terreno firme e, apesar disso, o procurasse. Leve como pluma, tentou apoiar-se a uma das moças. Ofegante, ela olhou à volta em busca de socorro, parecendo achar que o posto de honra não correspondia à expectativa, e espichou o pescoço o mais que pôde para livrá-lo do contato desagradável. Vendo que era impossível e que sua mais feliz companheira não lhe vinha em auxílio, limitando-se a segurar na mão trêmula o feixe de ossos que era a mão do artista, rompeu em pranto, com grande gozo dos espectadores. Teve que ser substituída por um funcionário, que ali se achava de prontidão. Chegou a hora da comida e o empresário conseguiu enfiar alguma coisa por entre os lábios de seu protegido, que parecia a ponto de desmaiar. Falava ao mesmo tempo, alegremente, para que ninguém notasse o estado do jejuador. Depois, foi feito ao público um brinde, aparentemente instigado por um murmúrio do artista ao ouvido do empresário. A banda confirmou-o com um vigoroso rufar de tambores e o povo foi-se dissolvendo, parecendo todos satisfeitos com o que tinham visto, com exceção do homem que se exibira, que nunca se sentia satisfeito. Assim viveu muitos anos, com pequenos intervalos de recuperação, em plena glória, admirado pelo mundo, mas apesar disto infeliz, tanto mais que ninguém parecia levar a sério seu desgosto. Que palavras de conforto precisaria ele ouvir? Que mais poderia desejar? Quando uma pessoa de boa vontade, dele se apiedando, tentava consolá-lo, dizendo que o jejum devia ser a causa de sua tristeza, acontecia ver-se ele tomado de cólera, principalmente quando a prova já ia adiantada. Com alarme geral, punha-se a sacudir as grades da jaula, tal animal selvagem. Mas o empresário tinha meios de pôr cobro a essas explosões, com as quais o artista gostava de se exibir. Desculpava-se publicamente por tal procedimento. Devia ser relevado, dizia ele, por causa da irritabilidade provocada pela abstinência, que pessoas bem alimentadas não estavam em condições de compreender. Depois, numa transição natural, mencionava a também incompreensível jactância do homem que se dizia capaz de jejuar por prazo maior ainda, elogiava-lhe a ambição, a boa vontade, o espírito de sacrifício implícitos em semelhante declaração. Dava em seguida o contragolpe, trazendo os fotógrafos que iriam vender ao público retratos onde se veria o jejuador, no quadragésimo dia, caído na palha, quase morto de exaustão. Essa distorção da verdade, embora conhecida do artista, tirava-lhe a coragem, deixando-o mais abatido ainda. Aquilo que era apenas conseqüência do precoce término do jejum era apresentado como causa! Impossível lutar contra a geral incompreensão.

Inúmeras vezes, com o máximo da boa vontade, ficava perto das grades, ouvindo palavras do empresário, mas, assim que chegavam os fotógrafos, caía de novo na palha, com um gemido, e o público, tranqüilizado, podia de novo aproximar-se para contemplá-lo. Anos mais tarde, quando testemunhas de tais cenas as relembravam, não podiam às vezes compreendê-las. É que, neste meio-tempo, o interesse por essas exibições esmorecera, tendo acontecido quase que da noite para o dia. Talvez houvesse razões profundas para o fato, mas quem iria se preocupar em analisá-las? De qualquer maneira, o mimado artista da fome viu-se um belo dia abandonado pelas pessoas ávidas de divertimento, que iam agora em busca de espetáculos mais atraentes. Num derradeiro esforço, o empresário correu com ele metade da Europa, a ver se a antiga simpatia poderia ser reavivada. Em vão. Em toda a parte, como que por secreto acordo, havia positiva repulsa pelos jejuadores profissionais. Naturalmente isto não poderia ter surgido assim tão de repente. Muitos dos sintomas ominosos, aos quais eles não tinham dado suficiente atenção, ou que haviam mesmo sido ignorados na embriaguez do triunfo, voltavam agora à memória, embora fosse tarde demais. O interesse pelos jejuadores certamente teria o seu recrudescimento, um dia, mas isto não era consolo para os que atualmente viviam. Que poderia então fazer o artista da fome? Fora aplaudido por milhares de pessoas e não queria agora conformar-se com exibições em barracas de feira, nas aldeias. Quanto a adotar outra profissão, não somente estava muito velho, como era fanático pela sua. Assim, despediu-se do empresário, companheiro de uma carreira inigualável, e firmou contrato com um grande circo. Para não ferir a própria susceptibilidade, evitou ler-lhe as cláusulas. Um circo importante, que está continuamente contratando e substituindo homens, animais e aparelhamento, sempre pode utilizar um artista, até mesmo um jejuador, contanto que não exija muito. No caso presente, não estavam os diretores interessados somente no artista, como em sua fama, durante longos anos adquirida. Considerando-se a peculiaridade de seu ofício, que não se prejudicara com a idade, não se podia dizer que ali estivesse um artista que, tendo ultrapassado a maturidade e não se achando mais em plena forma, viera buscar refúgio num circo. Pelo contrário, o jejuador afirmava ser capaz de suportar a abstinência tanto quanto antes e disso não se poderia duvidar. Chegou mesmo a declarar que se lhe dessem carta branca, o que lhe foi imediatamente prometido, poderia assombrar o mundo, estabelecendo um recorde jamais alcançado. Tal declaração provocou risos nos outros profissionais, pois não estava sendo levada em conta a frieza do público, fato que o jejuador, em seu zelo, parecera ter convenientemente esquecido. No íntimo, ele não deixava de perceber a verdadeira situação. Conformou-se em ver sua gaiola colocada, não no meio da arena, como principal atração, e sim fora, perto das jaulas dos animais -–local, afinal de contas – bastante acessível. Cartazes grandes e vistosos emolduravam a jaula, anunciando o tipo de espetáculo. Quando o público vinha, nos intervalos, ver as feras, tinha de passar pelo jejuador e algumas pessoas paravam, por momentos. Talvez se demorassem por mais tempo, não fossem os empurrões dos que vinham atrás, pela estreita passagem, e que não compreendiam o motivo pelo qual eram detidos. Isto impedia que os primeiros o examinassem com calma. Foi esta a razão que fez com que o artista que aguardara tais visitas como o maior acontecimento de sua vida, começasse a temêlas. A princípio, mal podia esperar pelos intervalos. Era excitante ver a multidão escoar para o seu lado, até que (tarde demais!) apesar do obstinado e quase consciente desejo de iludir-se, teve que se render à evidência. Convenceu-se de que aquelas pessoas, a julgar pela sua atitude, procuravam apenas visitar os animais. A sensação mais agradável sempre fora vê-los

de longe. Quando se aproximavam, ficava aturdido com os gritos e insultos dos dois grupos dissidentes, sempre renovados, constituídos, um, pelos que desejavam parar para observá-lo (não por real interesse e sim por teimosia) e o segundo, por aqueles que ansiavam por ver as feras. Logo começou a detestar mais os primeiros. Depois que passava o maior número, vinham os retardatários. Embora pudessem contemplá-lo à vontade, apressavam-se, sem nem mesmo olhá-lo, tal o medo de chegarem atrasados às jaulas dos animais. Raramente acontecia ter ele um golpe de sorte, quando um pai de família parava com os filhos, apontando-o e explicando o fenômeno, contando histórias de anos passados, quando ele próprio assistira a espetáculos mais emocionantes. As crianças, sem nada entender, pois nem na escola e nem em casa haviam sido preparadas para isto (que lhes importava o jejum?) indicavam, pelo brilho dos olhos, que dias mais auspiciosos estavam para vir. Talvez as coisas corressem melhor, pensava o artista, se não o tivessem colocado tão perto dos animais. Isto tornava ao povo fácil a escolha, mesmo não se levando em consideração que ele sofria com o cheiro desagradável, a inquietação das feras à noite, a passagem dos pedaços de carne crua, o ruído na hora de serem alimentados, coisas que o deprimiam profundamente. Mas não ousava queixar-se. Afinal de contas, devia aos animais a afluência de tantas pessoas e sempre podia haver alguém que o notasse e lembrasse de sugerir lugar mais isolado para a gaiola, caso ele chamasse atenção para sua existência e para o fato de, na realidade, nada mais ser do que um obstáculo à passagem do público. Pequeno obstáculo, não havia dúvida, e que cada vez menor se tornava. As pessoas familiarizavam-se com a estranha idéias de que delas se esperava, nestes tempos, que se interessassem pelo artista da fome, e esta familiaridade era justamente o veredito contra ele. Poderia jejuar à vontade e era o que fazia, mas nada agora o salvaria. O povo passava, indiferente. Fosse alguém explicar a arte do jejum! Quem não a apreciasse espontaneamente, jamais chegaria a compreendê-la. Os belos cartazes foram tornando-se sujos e ilegíveis e acabaram sendo em parte arrancados. A pequena tabuleta indicando o número de dias, havia muito marcava a mesma data, pois nem mesmo este pequeno esforço parecia útil aos funcionários. Assim sendo, o artista continuava jejuando e jejuando, como antes fora seu sonho. Isto não o incomodava, como ele soubera, que não o incomodaria. Mas ninguém mais contava os dias, ninguém.; nem mesmo o artista sabia que recorde estaria ele batendo e seu coração se confrangia. Quando, de vez em quando, um passante se detinha e zombava do velho deitado ali no chão, falando em fraude, tratava-se da mais estúpida mentira jamais inventada pela indiferença e malícia humanas. Não era o artista que estava trapaceando. Ele trabalhava honestamente; o mundo, sim, o lograva, privando-o da merecida recompensa. Muitos dias se passaram e também aquilo chegou ao fim. Um fiscal apareceu ali e perguntou aos funcionários por que se desperdiçava uma jaula que continha apenas um monte de palha suja. Ninguém soube responder até que um deles, notando o cartaz com o número de dias, lembrou do artista da fome. Enfiaram um pau na palha e o descobriram. - Ainda está jejuando? – perguntou o inspetor. – Quando, em nome dos céus, pretende parar? - Perdoem-me todos – murmurou o artista. Somente o fiscal, que tinha o ouvido perto das grades, conseguiu entendê-lo. - Claro que o perdoamos – respondeu, batendo na testa, como a indicar aos empregados o estado mental do jejuador. - Sempre desejei que admirassem minha resistência.

- Claro que a admiramos – disse o fiscal, amavelmente. - Mas não deviam admirar. - Está certo, não admiramos, então, mas por que diz isto? - Porque tenho que jejuar, não posso evitá-lo. - Que tipo você é! – exclamou o inspetor – Por que não pode evitá-lo? - Porque não consegui encontrar comida a meu gosto – respondeu o artista, erguendo um pouco a cabeça e falando junto ao ouvido do outro, para que não se perdesse uma sílaba. – Se a tivesse encontrado, creia que não teria feito nada disto e me empanturraria como o senhor ou qualquer outro. Foram estas suas ultimas palavras, mas não olhos apagados restava a firme, embora não mais orgulhosa, certeza de que continuaria a jejuar. - Pois bem, limpem isto aqui! – ordenou o fiscal. Enterraram o artista da fome, com palha e tudo. Em seu lugar, puseram uma jovem pantera. Até mesmo as pessoas mais insensíveis acharam agradável ver o animal selvagem pulando na jaula que durante muito tempo tão lúgubre parecera. A pantera ia muito bem. A comida que lhe convinha era trazida pontualmente pelos empregados e ela nem mesmo dava impressão de sentir a ausência de liberdade. Aquele nobre corpo, provido ao máximo de todo o necessário, parecia trazer em si a própria liberdade. A alegria de viver fluía de suas faces com tal ardor, que aos espectadores não era difícil suportar o choque. Mas enchiam-se de coragem, comprimindo-se à volta da jaula, e acabavam não querendo mais se afastar.

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