Sacramento

Published on January 2018 | Categories: Documents | Downloads: 58 | Comments: 0 | Views: 520
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SACRAMENTO Tenho no meu jardim, um pé de rosmaninho. Ele é, em tudo, igual a todos os outros pés de rosmaninho que há por este mundo. Aquele cheirinho gostoso, quando a gente esbarra nas folhas; brancas como uma gota de rosa, milhares de florinhas, quando chega o tempo; e as abelhas sem conta que ajuntam e zumbem. Gosto de me deitar na rede, perto dele, quando as noites são frescas e há aquela brisa... às vezes descubro que estou conversando com ele e já cheguei mesmo a agradar as suas folhas, como se ele sentisse. Nunca se sabe ao certo... Igual a todos os demais exceto uma coisa. Foi meu pai que me deu a mudinha, galho lascado, faz tempo. Meu pai já morreu. O rosmaninho guardou o seu gesto. Como se, do arbusto, saíssem fios de memória que me ligam a alguém que já não está mais presente. Fios, claro, que ninguém vê. Só eu. Ou aqueles a quem eu quiser revelar este segredo. O espaço em torno daquele rosmaninho é mágico – para mim, que vejo os fios. Os amigos, que não sabem o segredo, sentem o perfume, vêem o verde... Se eu lhes perguntar sobre o arbusto me dirão que o estão vendo. Sua fala me repetirá sobre aquela presença silenciosa e fiel: o pé de rosmaninho. Mas não sairá daí. A boca está prisioneira dos olhos. Pregada no chão. Faltam-lhe as palavras que lhe permitiriam voar... Somente eu, a partir do rosmaninho, poderei falar de uma ausência: alguém que não está ali, que já esteve... E da planta pulo para um rosto; e me lembro de risos, alegrias, tristezas... É por isso que o espaço em torno do rosmaninho é mágico. A memória faz a imaginação voar, e ela enche o ar com coisas humanas, que têm a ver com a amizade e a lealdade dos muitos anos vividos juntos. Coisa bonita esta: que haja coisas que são mais que coisas, coisas que nos fazem lembrar... A flor seca dentro do livro. Ás vezes um perfume que a gente sente, andando na rua. E, lá do fundo, vem a estranha sensação de estarmos ligados, por aquele perfume, a alguém, a algum lugar, longe, no passado. O repicar de um sino, que me leva para mundos onde nunca estive. O cantar de um galo, que nos vem de espaços que não mais existem. Ou um brinquedo, uma boneca velha, esquecida. Uma comida com gosto de saudade. Coisas presentes que nos abrem o mundo das ausências... Saudade não será isto? Sentir que algo está faltando, alguém, que o coração deseja, está longe... mas não basta a ausência. Há muitas coisas que se perderam e ficaram para trás, das quais não sentimos saudade. É que a gente não amava. A saudade nasce quando existe amor e ausência... Quando as coisas despertam saudades e fazem brotar, no coração, a memória do amor e o desejo da volta, dizemos que são sacramentos. Sacramento é isto: sinal visível de uma ausência, símbolo que nos faz pensar em retorno. Como aconteceu com Jesus que, logo antes da partida, realizou um memorial de saudade e espera. Juntou seus amigos, seguidores, partiu o pão e lhes deu de comer, tomou o vinho e com eles bebeu dizendo que, depois daquilo, viria a separação e a saudade. Eles seriam como uma noiva de quem o noivo é roubado... Tempo de lágrimas, de espera... E, por onde quer que fossem, encontrariam os sinais de uma Ausência imensa... E o coração ficaria inquieto, sem descanso... E cada palavra sua se transformaria numa oração, porque oração é a palavra balbuciada com desejo... O segredo do pé de rosmaninho é só meu. As lembranças e as saudades que ele desperta são só minhas. De modo que, junto dele, existe sempre uma triste sensação de solidão.

Diferente com o pão e o vinho. Ninguém ceia sozinho. Há um partir, um distribuir, mãos que se tocam, olhares que se encontram. E, em tudo isto, sensação como se fosse a de uma conspiração. Conspiração, palavra bonita de origens esquecidas. Conspirar, com-inspirar, respirar com alguém, junto. Conspiradores: respiram o mesmo ar. Jesus e os discípulos comendo o pão e bebendo o vinho, respiravam o mesmo ar: corpos ali, colados uns nos outros; e também o desejo e o amor – principalmente o seu desejo e o seu amor. Come-se a ceia, surge a mágica, os fios invisíveis da saudade e da espera são lançados, e a partir dali, dão-se as mãos os homens e as mulheres que têm, nos olhos, aquela marca triste-alegre da saudade e da esperança. Como deve ser com qualquer um que ame e esteja longe e nada tenha nas mãos a não ser a flor seca, o poema, as memórias, uma palavra... É assim a comunidade dos cristãos, esta coisa que se chama igreja: juntos, conspirando, mãos dadas, comem o pão, bebem o vinho e sentem uma saudade/esperança sem fim... (ALVES, Rubem. Creio na ressurreição do corpo: meditações, 6ª ed. Paulus, São Paulo, 2001.)

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